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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Porco Caipira


Foi a busca pelo autêntico sabor da carne de porco que iniciou essa história. O resultado pode ser conferido a partir de hoje, quando o chef Sauro Scarabotta serve em seu restaurante, o paulistano Friccò, os primeiros cortes e embutidos de porcos caipiras que não são encontrados no mercado.
Assim como os porcos comerciais, esses animais têm todos os documentos para serem comercializados. “É uma carne com origem e inspecionada, inteiramente rastreável”, garante Scarabotta. O processo legal para a comercialização das carnes custou-lhe mais de um ano de trabalho. O resto foi fácil. Duas semanas atrás, a Folha acompanhou o desmonte dos primeiros quatro porcos — das raças Piau e Nilo — no frigorífico artesanal Temra, em Araçariguama, interior paulista.
“Buscamos uma raça que não fosse de alta genética, como as comerciais, e com manejo diferenciado, para obtermos uma carne mais saborosa”, diz André Fleury, engenheiro-agrônomo, sócio da Temra e parceiro de Sacarabotta na empreitada.
A principal característica para o melhor sabor da carne de porco é a presença de gordura. Esta, por sua vez, depende da raça do animal, do manejo — eles são criados livremente e abatidos mais tarde — e da alimentação. “A gordura não é o demônio, é a parte boa. Ela dá maciez e sabor à carne”, lembra o chef.
Além do aspecto sensorial, há evidências químicas da qualidade de sua gordura e carne. Estudos feitos com porcos ibéricos e cinta senese (da Itália), criados livres e abatidos tardiamente, mostram que, além da quantidade maior de proteínas na carne, a gordura, em maior porcentagem, é rica em ácidos graxos insaturados, considerados saudáveis. “Cerca de 60% da gordura do porco é insaturada”, explica a nutricionista e clínica Andrea Esquivel. Por isso, sua coloração é clara. A boa gordura do porco é rosada, seguida da branca — como a do bacon de qualidade. “A carne marmorizada (entremeada de gordura) do porco não faz mal à saúde”, ensina Andrea.
É essa carne firme, marmorizada e de paladar pronunciado que Scarabotta e Fleury conseguiram com os porcos caipiras, descendentes das raças ibéricas trazidas pelos portugueses no século 16. De resto, guardam algumas diferenças entre si. “A carne do Piau é mais escura e sua gordura, mais brilhante”, ensina o chef.
Atualmente, os porcos Piau e Nilo estão ameaçados de extinção e seus poucos criadores os utilizam para consumo doméstico. Antes da invasão, no início do século 20, de porcos mais rentáveis – os porcos comerciais de alta produtividade, com muita carne e pouca gordura —, essas raças antigas eram abundantes no Brasil. “Elas não interessam comercialmente, pois são animais ricos em banha, e o consumidor quer proteína animal”, explica Fleury.
Quem for ao restaurante a partir de hoje, poderá provar cortes especiais para a alta gastronomia – o french rack e o short rack — e embutidos como terrine, linguiça fresca e mazza fegato (linguiça de fígado). É apenas a primeira amostra dos produtos obtidos dos 248 quilos de matéria-prima retirados dos porcos caipiras. As tripas costumam ser separadas por tamanho, pois seu calibre determina o tempo de maturação dos embutidos. “Assim, antigamente as carnes não ficavam prontas ao mesmo tempo, e se tinha produtos do porco o ano inteiro”, conta o chef italiano, que é neto de nortino, profissional que fazia os cortes e embutidos de um porco. Pois do porco, tudo se aproveita.
A primeira leva de porcos caipiras veio do criador Reinaldo Tavares, de Sarapuí (SP). Para chegar ao padrão de qualidade desejado, os porcos foram abatidos em idade mais avançada do que os porcos comuns — etapa fundamental na formação da “boa” gordura, gerada em idade mais avançada. “A ideia é trabalhar com vários pequenos produtores” explica Scarabotta. Os 17 anos de experiência e pesquisa no manejo do javali do frigorífico Temra vão ajudar a dupla a “estudar” os porcos brasileiros. “Cada fase do animal tem uma dieta específica. Sem nutrição, genética nenhuma faz sucesso”, lembra Fleury.

A foto abaixo, feita com competência (e sem medo de altura) pela fotógrafa Karime Xavier, é do porco caipira que vimos ser desmontado no frigorífico Temra, em Araçariguama. É uma aula e tanto!

1) Carré (short rack) – corte da região do pescoço, com mais gordura entremeada do que o carré, e, por isso, mais sabor e maciez. Pode ser grelhado ou assado.
2) Filé mignon – corte nobre e caro, representa menos de 1 kg do peso do porco. É o pedaço mais macio.
3) Copa – parte dianteira sem osso, pode ser grelhada ou assada (copa italiana).
4) Carré (lombo com costela) – servido inteiro, fica melhor se assado. Se separado costela a costela (bisteca de lombo), a indicação é grelhar.
5) Fralda de costela – saborosa (com boa gordura entremeada), é ideal para cozimentos longos na brasa. “Um pedaço dela no molho de tomate deixa-o muito saboroso”, ensina o chef do Friccò.
6) Barriga – curada, é a conhecida pancetta. O bacon é a barriga curada e defumada. Combinada com um corte magro, vai para a lingüiça.
6) Costela – carne com osso, pode ser grelhada ou assada. De acordo com a desossa, faz-se a barriga e a costela de ripa. A barriga curada é chamada pancetta e curada e defumada, bacon. Combinada a um corte magro, vai para a linguiça.
7) Couro da barriga – macio, faz-se o cotechino (embutido fresco, com especiarias e noz-moscada) e um prato famoso na Itália Central, o fagioli con le cotiche (feijão com couro). Também envolve carnes magras, para assá-las.
8 ) Cabeça – inteira, entra no preparo de terrines e rilletes. Orelhas, língua e miolo da bochecha podem ser salgadas, e as orelhas, cozidas e fritas.
9) Miolo da bochecha – parte cobiçada, é servida grelhada. “A carne é bem macia, de cartilagem fina, que lhe dá uma textura interessante”, diz Scarabotta.
10) Bochecha – carne gorda, é consumida curada. É ingrediente original do spaghetti alla carbonara.
11) Paleta – grande e versátil, pode ser curada (presunto), assada e recheada. No Friccò, Sauro irá servi-la como linguiça.
11 A) Stinco -  a “canela” do porco, costuma ser preparado no forno. Dele faz-se o eisbein (joelho de porco) alemão.
12)  – entra em receitas populares europeias. Com o pé e parte do couro da paleta faz-se o zampone (embutido típico de Módena), recheado com a mesma mistura do cotechino.
13) Aparas (retalhos) – o que resta dos cortes é destinado aos salames (os pedaços mais bonitos) e linguiças.
14) Gordura – em cubinhos, vai para o salame. A gordura da parte alta do lombo, curada, vira lardo, que serve para cozinhar ou comer (lâminas finas). Com o sangue, vira linguiça de sangue (como a francesa boudin noir).
15) Pernil – peça de maior peso, geralmente destinada aos presuntos crus (como o Prosciutto di Parma). Também origina o culatello (mais delicado) e o fioco di culatello (mais gordo e fino). Dele retira-se também o stinco.
16) Banha – de grande valor antes da chegada das geladeiras e conservantes, usa-se em todos os cozimentos, como os tradicionais confits.
17) Rabo – mesmo uso do pé.
18) Parte final do lombo – ao forno, é comum em festas como Natal.

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